Uma mudança promovida pelo sistema público de saúde britânico (NHS England) no início de 2025 provocou uma onda de preocupações entre pacientes com esclerose múltipla (EM). Segundo reportagem do jornal The Guardian, mais de 170 pessoas tratadas no Charing Cross Hospital, em Londres, relataram reações adversas e agravamento dos sintomas após a substituição do medicamento de referência Tysabri (natalizumabe) pelo biossimilar Tyruko, fabricado pela Sandoz.
O caso reacendeu o debate sobre a segurança das trocas terapêuticas automáticas entre medicamentos biológicos e seus biossimilares, especialmente em doenças crônicas e autoimunes que exigem estabilidade de tratamento. Embora o NHS tenha defendido a medida como parte de uma política de racionalização de custos, muitos pacientes afirmaram que não foram informados adequadamente sobre a mudança, nem consultados sobre a decisão de alterar o medicamento.
De acordo com a reportagem, diversos pacientes descreveram perda de mobilidade, fadiga intensa, dores musculares e recaídas súbitas após a transição para o Tyruko. Alguns voltaram a usar cadeiras de rodas ou bengalas depois de anos de estabilidade clínica. Uma paciente relatou ao jornal que, após apenas duas infusões do novo medicamento, “foi como se o corpo tivesse desligado”, e que precisou ser hospitalizada devido à piora rápida dos sintomas.
Outro entrevistado afirmou ter sentido efeitos colaterais inéditos, como dor de cabeça constante, formigamento e dificuldade de concentração. “Eu estava bem controlado há anos com o Tysabri. Quando trocaram o remédio sem me explicar o motivo, tudo desandou. É revoltante”, disse à reportagem.
Em vários casos, os sintomas apareceram poucas semanas depois da troca, levando neurologistas e farmacêuticos hospitalares a questionarem a condução da substituição. Alguns profissionais relataram que receberam pacientes em crise, sem histórico de recaída nos últimos anos, e que as queixas começaram logo após a nova prescrição.
Nesse caso, o papel do farmacêutico clínico é central para garantir a segurança terapêutica. Cabe a ele avaliar a equivalência entre os produtos, identificar possíveis sinais de perda de eficácia ou de reações adversas, orientar o paciente sobre o novo tratamento e registrar qualquer alteração no quadro clínico. Além disso, o farmacêutico atua como elo entre médicos, gestores e pacientes, assegurando que as decisões de substituição sejam baseadas em evidências e que o consentimento informado seja respeitado. Sua presença no acompanhamento farmacoterapêutico é essencial para a notificação rápida de eventos adversos e para a prevenção de danos decorrentes de mudanças não monitoradas em terapias biológicas complexas.
O que são biossimilares e por que o caso preocupa
Os medicamentos biossimilares são versões altamente comparáveis de fármacos biológicos originais, com estrutura e função semelhantes, mas nunca idênticas, já que são produzidos a partir de células vivas. Embora passem por rigorosos testes de equivalência clínica, pequenas diferenças no processo de fabricação podem alterar a resposta imunológica de determinados pacientes.
No caso da esclerose múltipla, essa sensibilidade é ainda mais delicada. O natalizumabe atua bloqueando moléculas que permitem a entrada de células imunes no sistema nervoso central, reduzindo inflamações e surtos neurológicos. Qualquer variação mínima na formulação pode interferir na eficácia ou provocar reações inesperadas.
Por essa razão, especialistas defendem que a substituição entre biológicos e biossimilares deve ser feita com consentimento do paciente e sob acompanhamento clínico rigoroso, especialmente quando se trata de doenças autoimunes, em que a reativação inflamatória pode ter consequências irreversíveis.
Especialistas alertam para falta de comunicação e monitoramento
A neurologista consultora do NHS, Dra. Katherine Dawson, afirmou ao The Guardian que “a decisão de mudar o tratamento foi tomada sem diálogo suficiente com os pacientes e sem garantir o mesmo nível de suporte clínico durante a transição”. Ela acrescentou que muitos dos afetados “não sabiam sequer o nome do novo medicamento que estavam recebendo”.
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Outros profissionais de saúde também criticaram a falta de protocolos uniformes para acompanhamento pós-troca. Segundo eles, a farmacovigilância deveria prever uma fase de observação mais longa e a possibilidade de retorno imediato ao medicamento original em caso de reação adversa. “O biossimilar pode funcionar bem para a maioria, mas não para todos. É preciso respeitar as variações individuais”, afirmou um farmacêutico clínico do hospital londrino.
A Sandoz, fabricante do Tyruko, declarou em nota que o medicamento foi aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) após cumprir todos os critérios de segurança e eficácia exigidos para biossimilares. A empresa reforçou que “diferenças pontuais nos relatos clínicos não indicam falhas do produto, mas refletem a variabilidade inerente ao tratamento de condições autoimunes complexas”.
Reação do NHS e debate ético
Diante da repercussão, o NHS England anunciou a abertura de uma investigação interna para avaliar os relatos e revisar as orientações sobre substituição automática. A instituição afirmou que “as decisões foram tomadas com base em evidências científicas e em benefício da sustentabilidade do sistema”, mas admitiu que “há lições a serem aprendidas quanto à comunicação com os pacientes”.
Associações de portadores de esclerose múltipla, como a MS Society, consideraram o episódio um alerta para o risco de se priorizar economia em detrimento da segurança. “Não somos contra biossimilares, mas cada pessoa deve ser tratada de forma individualizada. O que funcionou para um pode não funcionar para outro”, disse a diretora da entidade, Clare Walton.
O caso também acendeu uma discussão ética sobre o direito do paciente de participar das decisões que envolvem seu tratamento. Para muitos entrevistados, a falta de transparência foi o maior problema. “Não se trata de dinheiro, mas de confiança. Eu confiava que meu tratamento estava sob controle. De repente, mudei de remédio sem saber por que”, relatou uma paciente que teve de se afastar do trabalho após a recaída.
Reflexos para a farmacovigilância global
O episódio no Reino Unido repercutiu em agências regulatórias de outros países, que começaram a revisar seus protocolos de farmacovigilância para terapias biológicas. Especialistas brasileiros consultados pela imprensa observaram que o caso serve de exemplo para reforçar o papel do farmacêutico clínico nas etapas de monitoramento, notificação e acompanhamento dos pacientes submetidos a trocas de medicamentos complexos.
Além disso, reforça a necessidade de educação continuada para profissionais de saúde sobre os riscos e benefícios dos biossimilares, a fim de evitar que decisões administrativas se sobreponham à segurança clínica.
Mais do que um problema isolado, a experiência britânica mostrou como a introdução de medicamentos similares, mesmo aprovados por agências internacionais, exige vigilância constante, comunicação clara e respeito ao princípio básico da farmacoterapia: o paciente precisa estar informado e seguro em cada etapa do tratamento.
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