As declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro, de que teria apresentado episódios de paranoia e alucinações após o uso de pregabalina e sertralina, reacenderam o debate nacional sobre segurança de psicotrópicos, automedicação, riscos de interações e responsabilidade técnica. O tema ganhou repercussão depois de depoimentos divulgados em audiência de custódia, em que Bolsonaro afirmou que a combinação dos dois medicamentos teria provocado um quadro de “desrealização” e medo extremo, levando-o a romper a tornozeleira eletrônica por “paranoia”.
Em uma atualização recente, um relatório divulgado pelos médicos de Bolsonaro informou que, na noite anterior à audiência, o ex-presidente teria passado por uma “instabilidade emocional súbita” e solicitado atendimento médico, o que reacende a discussão sobre a credibilidade de suas afirmações e a necessidade de avaliar juridicamente o contexto clínico.
A narrativa, no entanto, levantou questionamentos imediatos entre especialistas. A BBC Brasil, o UOL e perfis de farmacêuticos nas redes sociais repercutiram as dúvidas sobre o suposto vínculo causal. E a análise técnica mais detalhada veio de quem lida diretamente com o tema: o professor do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, doutor em Farmacologia pela USP e farmacêutico clínico das Farmácias Suaiden, dr. André Schmidt Suaiden.
Logo de início, ele desmonta a premissa central: a ideia de que a combinação entre pregabalina e sertralina seja capaz de provocar delírios paranoides. “Essa interação simplesmente não existe na literatura científica. Não há qualquer padrão conhecido que associe pregabalina e sertralina a episódios delirantes, paranoia ou fuga da realidade”, afirma o professor.
Somam-se ao debate contrapontos de lideranças da área, como o presidente do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), Marcelo Polacow, que defende que o caso exige cautela e rigor antes de virar narrativa pública. “Não podemos normalizar explicações simplistas quando o tema envolve psicotrópicos e segurança do paciente”, sustenta. Mas Polacow pondera: falar de eventos adversos raros não invalida possíveis reações individuais, e abandonar essa discussão seria, segundo ele, um desserviço. Esse movimento ajuda a estabelecer a tensão necessária para um debate qualificado.
O que realmente se sabe sobre a pregabalina e a sertralina
No centro da polêmica estão dois medicamentos comuns no Brasil:
- Pregabalina: indicada para dor neuropática, epilepsia e transtorno de ansiedade generalizada.
- Sertralina: um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS), amplamente utilizado para depressão e transtornos de ansiedade.
Segundo o professor do ICTQ, André Schmidt Suaiden, ambos os medicamentos podem, em situações específicas, provocar sintomas como confusão mental, euforia ou alterações comportamentais. Mas isso é excepcional.
“Alucinações e paranoia são efeitos adversos muito raros. Quando ocorrem, costumam estar associados a doses muito altas, uso concomitante de álcool, uso de benzodiazepínicos, privação intensa do sono ou predisposição psiquiátrica prévia”, explica o professor.
Ele destaca que a pregabalina, embora possa causar desorientação e euforia em uma parcela pequena dos pacientes, raramente gera alucinações. Já a sertralina pode provocar náuseas e insônia, além de, em casos incomuns, sintomas dissociativos ou síndrome serotoninérgica, mas isso não se confunde com paranoia ou delírio.
Interação entre os dois medicamentos é o ponto crítico, e ela não existe
O ponto que André reforça é central para desmontar a narrativa divulgada: não há interação farmacológica relevante entre pregabalina e sertralina que produza delírios paranoides.
“Essa combinação não é conhecida por gerar episódios delirantes. Não existe padrão, não existe série de casos, não existe mecanismo farmacológico que justifique esse tipo de comportamento. A justificativa científica é muito fraca”, afirma.
Essa análise ganha peso porque vem de um farmacologista clínico que acompanha diariamente pacientes em uso dessas terapias. Em seu relato técnico, Suaiden reafirma que a literatura científica não endossa o tipo de reação atribuída aos medicamentos.
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Apesar dessa utilização confirmada pelo ex-presidente, um relatório teria sugerido que a pregabalina apresenta também importante interação com outras medicações que Bolsonaro estaria utilizando para tratar soluços, como clorpromazina e gabapentina.
O contraponto: cautela para não desinformar o público
Já Polacow reconhece que a avaliação técnica de Suaiden é sólida, mas acrescenta um alerta que merece nota: “Sempre existe a possibilidade, ainda que improvável, de reações idiossincráticas. O problema é transformar o improvável em explicação oficial para comportamentos complexos”.
Ele defende que declarações públicas de autoridades têm impacto direto no comportamento de milhões de brasileiros em uso de psicotrópicos. “É temerário associar medicamentos a comportamentos violentos ou persecutórios sem base científica robusta. Isso assusta pacientes, estimula abandono terapêutico e gera pânico desnecessário”.
A divergência, portanto, não é técnica, mas política: Polacow pede prudência na comunicação, enquanto Suaiden desmonta a hipótese farmacológica na raiz.
Quando reações adversas realmente acontecem
O professor do ICTQ retoma a análise ao explicar o que poderia justificar sintomas como paranoia ou alucinação, mas que não passam pela combinação pregabalina + sertralina:
- uso de doses inadequadas;
- associação com álcool ou depressores do SNC;
- consumo irregular de benzodiazepínicos;
- privação severa do sono;
- transtorno psiquiátrico não diagnosticado.
“Esses medicamentos podem, em casos muito raros, provocar confusão ou alterações perceptivas. Mas isso não é típico, não é esperado e não é padrão conhecido. Não corresponde ao que foi alegado”, reforça.
Impacto da polêmica entre pacientes e profissionais de saúde
Após a divulgação das falas do ex-presidente, profissionais relataram aumento de dúvidas em balcões de farmácias e consultas clínicas. Farmacêuticos que atuam em atendimento direto, como destaca Suaiden, precisam redobrar a orientação para evitar que pacientes interrompam tratamentos de forma abrupta, o que pode ser mais perigoso do que os efeitos adversos que temem.
Polacow, por sua vez, alerta para “o risco da narrativa fácil”, que transforma medicamentos comuns em vilões. “A discussão é legítima, mas precisa ser técnica. A polarização só atrapalha”, afirma.
Conclusão técnica: a hipótese não se sustenta
Ao final da análise, o professor do ICTQ é categórico:
“A combinação de pregabalina e sertralina não é conhecida por produzir paranoia, delírios ou alucinações. Não há interação farmacológica que justifique esse comportamento. A narrativa apresentada é tecnicamente muito fraca”.
A controvérsia persiste, impulsionada pelo contexto político, mas o consenso científico permanece firme: não existe base para associar os dois medicamentos ao tipo de episódio descrito.
Capacitação farmacêutica
Para quem deseja se capacitar e atuar em Farmácia Clínica, o ICTQ oferece alguns cursos de pós-graduação que devem interessar:
- Farmácia Clínica e Prescrição Farmacêutica
- Farmácia Clínica em Unidade de Terapia Intensiva
- Farmácia Clínica em Cardiologia
- Farmácia Clínica e Atenção Farmacêutica
- Farmácia Clínica de Endocrinologia e Metabologia
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